quinta-feira, 12 de julho de 2012

Interdisciplinaridade Do Espiritismo





Entendendo a  interdisciplinaridade como uma relação de reciprocidade, de mutualidade entre disciplinas diferentes e que pressupõe uma atitude diferente frente ao problema de conhecimento, ou seja, poderíamos dizer que o espiritismo é uma doutrina interdisciplinar, isto é, toca diversos outros ramos do conhecimento humano, de várias ciências, e mais, terá nela importante papel na desconstrução do habitual modo de pensar da sociedade, pois influirá sobremaneira, de forma geral, nestas mesmas áreas, quando o espiritismo for bem compreendido. Aliás, alguns dos pontos já prenunciados pelo espiritismo, já estão sendo praticados pela sociedade (ainda de forma imperfeita), mesmo sem a sociedade muitas vezes conhecer o que o espiritismo diz, é a força do progresso, também já dita pelo espiritismo.

O Livro dos Espíritos demonstra isso, no meu entender, ao tratar de diversos temas que adentram profundamente diversas áreas, por exemplo:

- Espiritismo e Direito;
• Questões 358; 359; 616; 683; 685; 760; 761, entre outras.

- Espiritismo e Psicologia/Psiquiatria;
• Questões 372-a; 374; 375; 376, entre outras.

- Espiritismo e Sociologia; 
• Questões 693; 693-a; 695; 696; 697; 775; 888; 888-a, entre outras.

- Espiritismo e Ciências Naturais;
• Questões 19; 20; 30; 31; 34; 35; 36; 585; 587; 594; 596, entre outras.

- E outras

            “O Espiritismo, marchando com o progresso, não será jamais ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar errado sobre um ponto, ele se modificaria sobre esse ponto; se uma nova verdade for revelada, ele a aceitará” (Kardec, 1868). Temos aqui, nesse trecho da codificação, a exposição por Allan Kardec de um dos principais aspectos do Espiritismo, que o diferencia das outras disciplinas que estudam o sentimento religioso, a noção de espiritualidade e Deus: a sua estrutura científica de base.

            Esse aspecto ao mesmo tempo em que é uma virtude do Espiritismo, lhe atrai uma responsabilidade e um desafio:

(1º) Como conciliar a necessidade de manter a integridade doutrinária do conhecimento Espírita, e ao mesmo tempo promover o seu progresso com a produção de novos conhecimentos, pesquisas e conceitos?

(2º) Como permitir a comunicação interdisciplinar do saber Espírita com as outras áreas de conhecimento científico, sem abdicar de sua “pureza doutrinária”?

(3º) Por fim, como possibilitar a comunicação dialética entre o Espiritismo e as religiões, uma vez que o campo estrutural de conhecimento Espírita foi criado de forma a abrir espaço a essa possibilidade?

Uma advertência implícita a esses questionamentos é o cuidado que devemos ter em não transformarmos o conceito e o objetivo de manter a “pureza doutrinária”, em um discurso ideológico e dogmatizante que paralise o progresso da ciência espírita e acarrete o seu fechamento para o diálogo com outras áreas de sabedoria. É bastante comum que uma área de conhecimento científico se modifique ao longo do tempo sem, entretanto perder a identidade que o particulariza. Essa é uma característica estrutural do conhecimento científico, marcando a sua qualidade de evolução e progresso.

Para exemplificar, tomarei como ilustração outra ciência humana progressiva – a Psicanálise. Fundada por Sigmund Freud, a Psicanálise surgiu através do estudo dos aspectos desconhecidos do psiquismo humano. A Psicanálise estuda aquilo que existe de desconhecido em cada um de nós – o inconsciente – através da análise clínica de sonhos, verbalizações e outras produções psíquicas em ambiente psicoterapêutico. Freud fundou a Psicanálise no início do século XX. Seu livro sobre a “Interpretação dos Sonhos” foi publicado em 1900.

Mas, desde essa época até os dias atuais, a Psicanálise progrediu de forma a ultrapassar sobremaneira a contribuição genial de seu fundador. Acumulou novas descobertas, que confirmaram alguns dos postulados de Freud, e negaram ou refutaram outros. Revisões e transformações conceituais foram realizadas, e decisivamente, as contribuições freudianas foram cada vez mais valorizadas à medida que os psicanalistas desenvolveram a capacidade de raciocinarem por si mesmos, partindo de Freud, mas mantendo um pensamento independente dele, ou seja, não reduzindo as suas conclusões apenas àquilo que Freud pregava. Além disso, a psicanálise dialogou com muitas outras áreas de conhecimento – teologia, filosofia, filologia, biologia, sociologia, antropologia, etc – o que é algo comum à interdisciplinaridade científica. Quando isso acontece, alguns conceitos e idéias são inevitavelmente reformulados, sem que a área de conhecimento em questão precise deixar a sua consistência estrutural fundante. Assim, a ciência psicanalítica evoluiu sem deixar de ser Psicanálise. Parte originalmente da herança teórica deixada por Freud, mas não se limita a essa – ao contrário, transcende-a. Sendo o Espiritismo uma ciência, desafio semelhante se fixa à sua frente.

Os questionamentos levantados se justificam à medida que a Codificação foi escrita na segunda metade do século XIX, num linguajar apropriado para a época, mas que precisa ser revisado em função das novas descobertas e conceitos que se desenvolveram até os dias atuais. Porém tal revisão precisa estar fundamentada em bases críticas que mantenham a integridade da doutrina, possibilitando transformações e revisões conceituais progressivas ao corpo teórico do Espiritismo e não distorções pseudocientíficas alienadoras.

Assim, em que parâmetros podemos nos basear para promover o progresso da ciência Espírita, de forma a manter a sua Pureza Doutrinária? A resposta se encontra na análise histórica do próprio percurso evolutivo dessa ciência. Quando Kardec – orientado pelos Espíritos que são, aliás, os reais fundadores do Espiritismo – organizou a literatura existencialista da Codificação, balizado pela sua formação de pedagogo humanista e especialista em várias áreas de saber, em grande medida ele se encontrava em sintonia com o racionalismo iluminista e a filosofia positivista de meados do século XIX, que se expressa na ciência Espírita pela predileção de basear as suas conclusões experimentais em dados de observação empírica.

Mas, num certo sentido relativo, Kardec já se encontrava muito à frente de seu tempo. Para integrar ciência, filosofia e religião, Kardec precisou transcender o caráter positivista do seu conhecimento, adotando um discurso pedagógico dialético e sintetizador. À semelhança de filósofos como Hegel, apenas através de uma lógica dialética (num discurso que une tese e antítese, em uma síntese) Kardec poderia ter integrado noções aparentemente tão díspares como fé e razão, ou a compreensão dos mecanismos de interação entre espírito e matéria.

Abstrai-se da leitura kardecista o mesmo criticismo racional de Kant, e a construção do discurso analítico nos moldes de uma hermenêutica clínica, semelhante à que Freud fundaria como epistemologia científica na Psicanálise do século seguinte, baseada no método da consistência interna do raciocínio lógico empregado. Resultou daí, um discurso “totalizante” por parte de Kardec, semelhante ao dos pesquisadores modernos de orientação holística. Entretanto, essa metodologia científica não se encontrava formalizada na época de Kardec, ou seja, o Codificador já possuía um olhar científico clínico e holístico (portanto, sintetizador, amplo e global) numa época em que a ciência não se pautava por tal paradigma. Certamente, foi necessário a união de sua formação acadêmica rigorosa com a contribuição revolucionária dos Espíritos, para tal.

Essa estrutura global de produção de conhecimento permitiu simultaneamente que ao longo do tempo, a ciência Espírita muitas vezes se colocasse à frente da chamada “ciência oficial”, ao mesmo tempo que muitas descobertas da ciência e da filosofia caminhassem em direção à confirmação dos postulados Espíritas.

A contribuição mútua entre o Espiritismo e a Medicina, também foi responsável pela fundação da reconhecida Associação Brasileira de Médicos Espíritas, e suas regionais em cada estado do país. Instituições universitárias respeitáveis como a USP e a UNICAMP acabaram formando pesquisadores que são nomes importantes dentro do movimento Espírita, tais como Núbor Orlando Facure (neurologista e ex-professor da UNICAMP) e o mestre em Medicina Sérgio Felipe de Oliveira, que abriu espaço para o Espiritismo em ambiente universitário com o seu curso de Pós-graduação sobre Integração Cérebro-Mente-Corpo-Espírito, na própria USP. No campo da filosofia o mérito é de José Herculano Pires, como tradutor das obras de Kardec e pesquisador de parapsicologia. Outros nomes merecem ser citados como Hernani Guimarães Andrade (na Parapsicologia e Psicobiofísica, com seus estudos sobre o Modelo Organizador Biológico) e o psiquiatra Carlos Toledo Rizzini, que escreveu sobre Psicologia e Espiritismo.

Outro fator de destaque: pouco a pouco, começam a surgir teses de mestrado sobre o saber Espírita, em ambiente acadêmico universitário, legitimando a posição científica da Doutrina. Algumas dessas teses já alcançaram as bem-conceituadas Universidades Federais Públicas, e outras foram defendidas nas PUCs de diferentes regiões. Uma dessas teses deu origem a um livro recentemente lançado - “O Espírito em Terapia”  da psicóloga clínica Ercília Zilli, de quem os esforços são responsáveis pela fundação, coordenação e manutenção da Associação Brasileira de Psicólogos Espíritas (ABRAPE), outra vitória importante para a divulgação da ciência Espírita. 

Todas esses pesquisadores estão contribuindo, pouco a pouco, para a construção da história da ciência Espírita no Brasil. Sem se limitarem literalmente aos escritos da Codificação, mas partindo dela, vêm promovendo um processo de evolução do conhecimento Espírita, aliando a liberdade de pensamento crítico com os ideais de “Pureza Doutrinária” tão apregoados pela comunidade Espírita. Trabalhos interdisciplinares entre o Espiritismo e as outras ciências foram surgindo, sem descaracterizar as especificidades de cada campo, sendo as revisões conceituais realizadas em um contexto livre do pensamento dogmatizante, mesmo porque a ciência não se forma sob um saber absolutista, mas sobre “verdades” relativas e provisórias.


Como ciência, o Espiritismo também desenvolveu uma tecnologia própria, inicialmente com os experimentos mediúnicos realizados por Kardec (tais como os que são encontrados no “Livro dos Médiuns”) e depois com as contribuições da Parapsicologia (Andrade, 1990). Essa evolução também teve conseqüências no aprimoramento dos vários tipos de serviços de orientação espiritual, constituindo uma aplicação prática acessível à população.

Por fim, um próximo passo do desafio evolutivo do conhecimento Espírita, será a articulação da sua cosmovisão esclarecedora com o conhecimento produzido por outras religiões e disciplinas espiritualistas. Filosoficamente, a estrutura dinâmica e dialética do Espiritismo também foi criada para possibilitar a comunicação e a transdisciplinaridade entre essas várias escolas de pensamento (vide a questão 628 de “O Livro dos Espíritos”), cabendo aos tempos futuros a concretização dessa possibilidade.
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